Carta 020 - O nascimento de Milton
Querido Joaquim,
Hoje venho te contar sobre outro artista que seu tio tanto ama — e que talvez, um dia, quando crescer, você também carregue no coração. Ele já é velhinho, não canta mais nos palcos e, há pouco tempo, descobriu que carrega uma doença que vai, aos poucos, apagando as memórias que juntou ao longo da vida.
Essa condição, Joaquim, parece triste para nós, que tanto o admiramos. Mas dizem que, para ele, é como um retorno suave ao começo de tudo. Aos poucos, ele deixará de lembrar do que viveu e criará, sem perceber, um mundo só dele, onde as primeiras estradinhas da existência precisarão ser percorridas outra vez.
Como uma criança que ainda se encanta com as cores. Como uma criança que se assusta e sorri com os sons da cidade. Como uma criança que não reconhece os rostos, mas reconhece o afeto. Como uma criança que precisa reinventar a vida para, enfim, descobri-la.
Ainda que essa notícia seja estranha e inadiável, esta cartinha nasce justamente aqui, neste instante, para te lembrar da importância de sermos bons, de colecionarmos alegrias e de trabalharmos com aquilo que acende o nosso coração.
Ele, Joaquim, sempre caminhou firme atrás dos seus sonhos. Atravessou batalhas em que gente cruel quis calá-lo. Viveu momentos em que precisou colocar sua música — seus sons e seus sonhos — de lado, para poder continuar existindo.
Milton Nascimento é seu nome. E agora, de certo modo, ele precisará nascer de novo para viver. Seu sobrenome já anuncia essa travessia — como se dissesse, baixinho, que ele vai conseguir cumprir essa missão, não é mesmo?
No nosso próximo encontro, quero te apresentá-lo. Para que você o conheça e para que ele nunca se esqueça de que o legado é a maior herança que deixamos no mundo. Que a memória que parte dele viaje alguns quilômetros para te encontrar. Que a lembrança que, aos poucos, se dissolve, te faça lembrar do seu tio, da terra onde nasceu, das esquinas e dos becos, e de como é bonito ouvir uma música que abraça a vida.
16 nov. 25
