Carta 005 - Drummond, Belchior, Mãe, Jones e Colorado

Querido Joaquim,

Hoje quero falar sobre uma coisa que me assusta muito: os medos. Sobre os vários medos que povoam o meu imaginário e sobre os medos que preservo numa caixinha. Sobre aqueles que cultivo para o meu próprio bem e sobre aqueles que insistem em permanecer comigo ao longo da vida.

Sempre achei que somente eles nos dão coragem, sabe? Sem eles, talvez fôssemos mais imprudentes, faríamos coisas sem pensar, existiríamos pouco (isso é o que eu também digo para me autodefender deles).

Esses dias eu descobri: medos existem para que tenhamos medo deles. Como um cachorro que corre atrás do próprio rabo — um ouroboros, sabe? Aquela cobra que come a própria cauda, sugerindo um ciclo. Fins e começos. Um medo correndo atrás do outro, como numa brincadeira de pega-pega ou pique-esconde.

Eu mesmo tenho medo de abelhas. E de aranhas. E de insetos em geral. De que alguns deles subam pelo meu pé. De que subam pela perna. De que avancem em direção ao meu pescoço — aí não tenho medo, tenho pavor! Deus me livre!

Sabe do que mais tenho medo, Joaquim? De abrir uma sacolinha na fila do caixa do supermercado. Sempre que tento realizar essa tarefa tão desafiadora, demoro minutos para encontrar a aba que descola os lados e abre o plástico por completo. Nesses segundos que parecem séculos, tenho a impressão de que a funcionária está me julgando por demorar tanto e de que toda a fila está se perguntando por que fui tomar aquela decisão. Na ânsia de não atrapalhar os outros — de não atrasar quem não vê a hora da fila andar — tomo para mim o medo de estar enchendo o saco de alguém.

Também tenho medo de dirigir — por enquanto. E de que alguém perceba que eu tenho medo de dirigir. E de que alguém buzine em protesto, deixando claro que percebeu meu medo de dirigir. De provocar um acidente por medo de dirigir. De, por prudência excessiva, não conseguir responder aos meus instintos e mudar a direção do veículo num improviso qualquer. De, por imprudência dos vizinhos de rua, não conseguir reagir quando um gatinho decidir atravessar a rua.

(Hey: teria esse gatinho a coragem que me falta para romper a estrada do medo? Ou seria apenas o instinto do felino em atravessar a rua em busca de comida? Teriam medo os gatos que pulam de edifícios, pilastras e marquises? Ou fariam isso com medo mesmo?)

(...)

Seu tio ama duas figuras que nos ajudam a entender essa equação: Chapolin e Indiana Jones. O primeiro, um personagem mexicano, foge de algumas trapalhadas e tem muito receio de enfrentar algumas das aventuras em que é colocado como único salvador. O segundo, um personagem estadunidense, é um professor de história que não é lá muito sociável e que morre de medo de cobras — seu pai, Henry Jones, também na ficção, tinha pânico de ratos! O medo, além de arrepiante, também é hereditário.

Ambos são tidos como heróis. Indiana Jones, mesmo, resolve enigmas, briga com inimigos poderosos e combate injustiças mundo afora. Chapolin também — de um modo diferente, é claro — enfrenta oponentes ferozes e indecifráveis (alguns dos quais, talvez, morem dentro de si mesmo).

Chapolin se vangloria de ser o que é: um herói sem poderes, atrapalhado, mas ciente de sua responsabilidade. Jones também: com seu chicote, já enfrentou um rio repleto de cobras, areias movediças insuperáveis, governos desumanos e até as temidas quedas das Cataratas do Iguaçu.

Ficção, eu sei; mas até elas, Joaquim, não dão a certeza de que nem tudo é perfeito! De que nem tudo é — e nem pode ser — como imaginamos. Há de haver um defeito em nós que nos diferencie dos outros, que nos faça pensar um milhão de vezes antes de fazer alguma coisa. Uma resistência que nos faça sentir que é melhor, às vezes — em nome do medo — não fazer coisa alguma. E seguirmos calmos e tranquilos pela viela da incerteza.

(...)

Fui longe demais, né? Tenho medo, às vezes, de não ter tempo de transmitir a você as coisas boas que aprendi. Mas há uma vida inteira para que isso aconteça, não é mesmo? Sei que ainda seremos, eu e você, Indiana Jones e Chapolin a encontrar aventuras e desafios para vencermos juntos.

Sua vovó Roseli já nos ajudou nessa missão e comprou uma fantasia perfeita do herói colorado para você vestir em breve! O chapéu do Indiana Jones também já está aqui, colocado na minha parede como um quadro. À espera do próximo acontecimento. À espera do próximo medo.

Ainda não sei qual será o seu, Joaquim. Mas ele existirá, mais cedo ou mais tarde. Talvez você ainda não tenha nenhum e nem saiba o que é ter coragem, mas essa duplinha certamente vai aparecer na sua vida em algum momento.

Posso te dar um conselho? Quando puder pensar sobre isso, tente colocar “medo” e “coragem” na mesma balança e equilibrá-los milimetricamente, como se fosse uma senhora exigente a cortar duzentas e trinta e duas gramas de mortadela. O equilíbrio, mesmo em excesso, é a soma perfeita para uma vida plena. Por isso, nunca deixe faltar medo ou coragem — mas nunca deixe sobrar também, combinado? Uma coisa só existe se existir a outra. Guerra e paz. Inverno e verão.

(...)

O MEDO
[Carlos Drummond de Andrade]

o medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

tenhamos o maior pavor,
os mais velhos compreendem.
o medo cristalizou-os.
estátuas sábias, adeus.

adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
nossos filhos tão felizes…

fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
depois da cidade, o mundo.
depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

(...)

P.S.: Belchior, um dos cantores que seu tio mais gosta, dizia em uma música ter "medo de avião". Dizia também, entretanto, que foi por esse medo que ele criou a coragem necessária para segurar a mão de uma namorada. É o medo alimentando o amor, o cuidado, a proteção.

P.S(2).: Valter Hugo Mãe, um dos escritores favoritos do seu tio, dizia sentir "medo de dizer quem ele era" ao manifestar um nervosismo presente em si antes de entrar no palco de um grande festival literário brasileiro. Lembrou, todavia, que "havia de sobreviver a isso, só não sabia como". É o medo como combustível da vitória.

Com carinho,
Tio Matheus,
03 ago. 25