Muito pouco

Não estamos acostumados ao usual. Muitos menos à normalidade. É da nossa natureza contrariar a lógica inventando desfechos e novos significados. Encarar a simplicidade e percorrer a estrada comum do vazio semântico é desafio para poucos.

Se, em um poste a caminho de nossas casas, uma luz se acende - apagando logo em seguida - nunca pensamos que pode se tratar apenas de uma falha no sistema de iluminação ou, até mesmo, um sinal claro - com o perdão do trocadilho - de que uma lâmpada pode estar deixando de funcionar. Sem pestanejar, começamos a criar hipóteses mirabolantes que variam desde uma invasão alienígena a uma tempestade solar que acabará por limar toda a humanidade.

(Um pouco de suspeição não faz mal a ninguém, eu sei, mas um bocado de realidade, às vezes, pode funcionar mais do que uma dose de fantasia, né? )

Nem sempre a vida está nos mandando recados. Às vezes, o que ela também quer da gente é um pouco de indiferença. 

(...)

“Se um gato preto cruzar seu caminho", lembra o humorista estadunidense Groucho Marx, "significa que o animal está indo para algum lugar.” Genial! Talvez ele esteja apenas procurando algo, voltando pra casa ou simplesmente atendendo as exigências do seu instinto.

Flávio José, sanfoneiro brasileiro, dizia algo parecido: "se avexe não. Amanhã pode acontecer tudo! - inclusive nada". Genial também! Tal afirmação - anti-coaching, eu diria - nos mostra que há algo de belo e extraordinário também no vazio e na falta de expectativa. Positividade atóxica.

(...)

Como é rica a ausência de palavras - como quando apenas um gesto é capaz de responder uma pergunta. Como é intensa a falta de uma visão nítida das coisas - como quando apenas um caminho repleto de pedregulhos surge como possibilidade. Como é verdadeira a noção da existência comum e do cotidiano livre  - como quando a única resposta parece ser a falta dela.

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Sei que há sentido até nas coisas sem sentido - falta de personalidade, por exemplo, pode ser um jeito de expressar a própria visão de mundo. Silêncio quase nunca é ausência de som; ao contrário, pode ser excesso. Há sons silenciosos e sussurros ensurdecedores. E é nessa teia invisível de nadas que se forma o todo. 

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Tenho fascínio pela expressão "muito pouco". Primeiro, porque, em si, ela já carrega uma certa estranheza. Especialmente porque também nos mostra que até para exprimir uma noção de quantidade, é preciso uma certa anomalia semântica, uma contradição. Afinal, "tudo" e "nada" são geleias do mesmo pote. Sinais que se somam e subtraem sem perceber. 

Às pausas, vida longa. Às brevidades, um sonoro "para sempre".

Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome das rosas!

(Florbela Espanca)

(Hey! E se o maior mistério for
justamente a ausência de um?)
Abraços! 08 jun. 25