A rede, a sede – o fone e a fome
Gostar de música, eu diria, é quase uma unanimidade. O jeito com o qual ouvimos música é que muda. Contemplar as diferenças que nos movem é aceitar o que nossos polegares já nos dizem há séculos: não somos iguais. Sob um mesmo fato, suscitam milhões de outros imaginários, como se nossa visão fosse responsável pelo nascimento – e renascimento - das ideias.
Costumes, você sabe, são como aniversários: nunca se repetem. Geograficamente, podem até apresentar semelhanças. Entretanto, dentro de cada bairro, às margens de cada rua, no interior de cada residência, há sempre um novo jeito de se fazer algo - ou uma maneira até então desconhecida, impenetrável.
O mundo é uma vitrola, um moinho, uma bola azul.
(...)
Tenho o costume de ouvir música durante os meus trajetos de ônibus. De fones de ouvido, passeio quase sempre pelas mesmas listas, sem novidades. Noto que os fones que utilizo priorizam mais os agudos (o que me alegra e entristece muitas vezes).
Em casa, gosto de ouvir o que ainda não conheço. Como se o lugar onde moro fosse um convite para descobrir outros lugares que ainda não visitei. Os fones, talvez por sua ergonomia, dão mais destaque para os graves (o que me entristece e alegra muitas vezes).
(...)
Gosto
de imaginar o mundo como um tocador de discos, onde cada trilha percorrida é
capaz de manifestar um som, um timbre, uma canção. Poesia, eu sei - mas do que é que estamos precisando mesmo? Hein?
Gosto, especialmente, das
ranhuras naturais de cada trajetória - e até as incongruências físicas e
mentais que o tempo tratou de construir ao longo das execuções.
Gosto até quando o som que ouço através das caixinhas do meu computador dividem espaço com as panelas no fogo, o cachorro latindo no vizinho ao lado, o falatório de quem passa na rua preocupado com o preço do feijão.
Muitas vezes, não raramente, a música ganha cheiro, nuances e peculiaridades que não constam nas criações originais – e isso é recriar uma nova canção a cada play. Devastando a pessoalidade de seus criadores, ouvir é verbo ativo, é manifestar uma atmosfera altamente subjetiva do que estamos presenciando – e de onde estamos vivendo aquela experiência.
(...)
Gosto do som limpo também, de escolher com capricho o álbum que quero ouvir, no dia mais tranquilo do meu dia. Gosto da magia da descoberta, das playlists do algoritmo, do encanto – e do desencanto - da emoção. Gosto até quando não escolho a música que quero ouvir pois sempre me surpreendo. Quase sempre, rolam boas pistas se devo ou não continuar a trilha, se aquele som deve ou não continuar a habitar os meus ouvidos. Boas e más canções nos procuram becos afora, como um detetive à caça de uma nova informação, capturando nossa atenção tão desatenta do mundo digital.
Ah, não há como explicar essa sensação! Se há, eu desconheço. Uma música esquecida pode brotar no meio da rua, como água que racha o asfalto; vinda de uma rádio no carro de aplicativo, assumidamente aleatória; ou até nos assobios de alguém que atravessou a rua ao seu lado, sem lenço, sem documento, sozinho.
No
fim das contas, é impossível ouvir uma canção e sair ileso. Alguma parte da
gente sempre fica presa na nota que acabou de soar. A canção não
resolve as perguntas, mas suaviza o peso delas. Transforma letras em sons,
acordes em combinações. A sede em saciedade, a fome em satisfação.
[Apontamentos de História Sobrenatural. Mário Quintana]