Para não me esquecer de lembrar

Demorei quinze anos para fazer uma foto. Nesse período, entretanto, acontecia o meu treino: olhos e mentes sendo ajustados, um pouquinho de exercício nas articulações para aguentar agachamentos e caminhadas, um artefato de duas lentes posto à frente dos meus olhos para enxergar melhor e uma esperança ainda pulsante de que a fotografia ainda seria a arma ideal para manter viva a chama da eternidade.

Assim como os músculos, ideias também precisam das pausas para florescerem. O silêncio quase sempre é o compasso exato para a criação de um olhar. Como um fruto que passa dias sem entender a maturidade que dele se espera.

Ok, nem tudo é poesia. Aos olhos de quem prefere abster-se dos encantos da vida literária, o relato que se segue trata apenas de demonstrar uma oportunidade profissional, com um pagamento ao final de seu ciclo, onde luz e sombra brigariam entre si num ringue de cliques e demais formalidades, aparecendo e sumindo por detrás de uma cortina que se abre em velocidades diferentes, sob as rédeas de um sensor pequeníssimo. E sensível.

Mas nem tudo é técnica, eu sei. Depois de quinze anos participando como visitante, fotografar o Flipoços pela primeira vez foi também uma ode ao espanto. Foi beleza. Foi ver crianças descobrindo livros como quem encontra pérolas em uma concha. Foi ver adultos encontrando alento enquanto um autor diagnosticava dores que também eram suas. Foi ver leitores entusiasmados apenas com um autógrafo simbólico que pode ser o mesmo para tantas pessoas Brasil afora.

(...)

Tá legal, a gente vive de encanto. Por isso, fotografar o Flipoços foi a oportunidade ideal que eu precisava para reconhecer que, por amor às palavras, abraços e carinhos entre estranhos são coisas sólidas e usuais. E que se é nas diferenças que residem as coisas que nos unem, tá aí a prova de que é possível, sim, amar o próximo. 

Talvez por isso esse texto tenha nascido: para manter vivo comigo o que meus olhos puderam ver e sentir. Para trapacear a minha memória quando ela, enfim, resolver se aposentar. Para ludibriar discos rígidos quando nenhum dispositivo for capaz de ler o que a tecnologia ousou registrar, afinal, os olhos sempre foram as verdadeiras raízes do sabor, os fidedignos prazeres da experimentação, as alegorias do ser e estar presente em um mundo novo ou velho.

Escrevemos com fotos, fotografamos com palavras. Pintamos com olhares e olhamos com tinta fresca a vida. Buscamos, na pressa do instante, a paciência da eternidade. É do fotógrafo a decisão sobre o quanto do mundo vai entrar pela lente da câmera, mas é do mundo a decisão sobre qual fotografia vai entrar pelos olhos do fotógrafo.

Entre a escolha do enquadramento e o acaso da emoção, vive a mágica da arte: aquilo que se planeja encontra o inesperado, e é nesse encontro que nasce o verdadeiro retrato.

(...)

Fotografar o Flipoços foi juntar-se a um coral de vozes que ecoam há muitos anos. Foi escrever com a luz e deixar ser iluminado pelo brilho das palavras. Cada foto feita era um atestado de que ali estive, de que ali estava e de que ali sempre estarei. Uma carta, tal qual a de Caminha - que testemunhou o início do Brasil - onde estariam sempre minhas memórias e afeições. Isso tudo em minha cidade, que por nove dias se tornou a capital das palavras. Um chão conhecido, mas redescoberto. 

(Pisando no raso é que vemos a profundidade do que sempre esteve ao nosso redor, né?)

(...)

Não sei se pude explorar as nuances de tudo o que vi, mas fiz o que meu ofício podia oferecer: registrar para sempre o que duraria tão pouco. As imagens ficam junto das palavras. Companheiras do tempo, são elas que nos constituem. Fotografar o Flipoços foi aprender com as letras o que só a fotografia poderia me apresentar.

Ok, há imagens que dizem mais do que as palavras.

(mas só se pode dizer isso porque elas existem, né?)

mundo novo, velho amigo
tudo cabe em seu umbigo
tudo aquilo que vem e vai
aquele que entra e aquele que sai
tudo permanece
sempre que anoitece
tudo se modifica
até quando se fica
mundo velho, novo amigo
nada cabe em seu umbigo
aqui fora é tudo diferente
desde o galho até a semente
há quem prefira a barriga da baleia
há quem digira o feitiço da sereia
mas aqui dentro é tudo muito igual
desde a amargura do açúcar à doçura do sal
tudo acontece
sempre que amanhece
tudo se edifica
até quando se intrinca 
velho novo, mundo amigo
tudo vale em seu perigo.


(...)

À equipe GSC Eventos, meu muito obrigado pelo acolhimento. Às amigas e aos amigos que fiz nessa última semana, meu abraço cheio de carinho por tantos momentos de distração e conversa. Ao meu parceiro e confidente Rodrigo Galhardi, meu obrigado especial por mais um ano compartilhando experiências e a companhia sempre engrandecedora de sua amizade. Ao já grande amigo Bruno Alves, fotógrafo oficial do evento e meu mentor nesses nove dias de imersão, minha eterna gratidão pela oportunidade.

Poços de Caldas
abr./mai. 25