Preço da pureza

Acho que não me conheço bem. E tenho certeza de que qualquer tentativa de tornar essa tarefa fácil também será em vão. O motivo é desalentador: nem sempre somos capazes de olhar para dentro de nós mesmos e identificar o que não está visível. A anatomia da essência é livro raro, não pode ser encontrado em qualquer livraria do ramo. Somos blocos gigantes de um iceberg que tem em suas profundezas uma exuberante distância invisível e um peso estranhamente incalculável. Somos quem achamos que somos.

Do lado de fora eu sei quem sou: estatura mediana e um corpo, digamos, nada longilíneo. Tenho cada vez mais barriga e cada vez menos cabelo. As roupas, até então, são simples: camisetas e camisas quase todas lisas e calças sem muitos detalhes. Gosto de blusas e meias, até quando não está muito frio. Os sapatos são, na verdade, versões de botas pequenas, de cano curto, nas cores marrom e preta.

Isso não diz muita coisa, né? Ou diz? Talvez amanhã isso perca validade. Mês que vem então, nem se fala. Mas talvez eu tenha uma estatura mediana e um corpo nada longilíneo por conta da genética dos meus pais (será?). E a crescente barriga? Talvez revele os meus hábitos alimentares. Ter menos cabelo revela que não sou tão jovem assim como penso. Gostar de camisetas comuns, de usar blusas e meias, talvez dê sinais de minha personalidade. Ou de minhas predileções. 

O que quer dizer, de certo modo, que até o que não diz muita coisa pode dizer muito.

(...)

De fato, saber quem a gente é nunca será um enigma fácil de resolver. Buscar incessantemente essa resposta, entretanto, me parece ser cada vez mais uma furada. Saber menos de nós pode ser o chamado para uma estrada repleta de aprendizados, ainda que essa trilha possa parecer obscura demais e repleta de obstáculos em sua extensão. 

(Hey! Mas não procurar saber muito de si também dá espaço para que as pessoas criem versões dissonantes e desonestas de nós mesmos, né? Desisto.)

Na real, não sei o que é melhor. Hoje, me parece pouco interessante compreender a fundo as minúcias de um relógio e suas centenas de engrenagens, mas amanhã, não sei, talvez eu queira abri-lo para desmontá-lo, para recriá-lo, para entendê-lo. Depois de amanhã, talvez eu queira olhá-lo, fitá-lo e admirá-lo como quem guarda verdadeiramente algo, para lembrar o poema de Antonio Cícero.

A vida só é legal pra caramba porque ela nunca nos dá a resposta de tudo. Mais do que saber quem somos, legal mesmo é saber quem não somos. Isso, por si, só já uma conquista e tanto!

(...)

Nas descrições pessoais que pedem de nós mesmos, sempre fico na dúvida sobre o que colocar no campo "profissão". Quando escolho algum ofício que pratico, logo me vem a sensação esquisita de que posso parecer arrogante demais me autorreferindo. Quando posso, deixo em branco.

Bom demais fugir dos rótulos. Faz mais sentido pra quem prefere o que está dentro da embalagem.

(...)

"não sei o que foi que eu fiz
pra merecer estar radiante de felicidade
mais fácil ver o que não fiz
fiz muito pouca aqui pra minha idade
não me dediquei a nada
tudo eu fiz pela metade
porque então tanta felicidade?"


[Luiz Tatit. Felicidade]


abraços,
03 fev. 25