Lua em sol
Acidentes: não é só no trânsito que eles acontecem. Na música, na gramática e até na organização de um percurso eles podem surgir. Sorrateiros. Inesperados. Necessários.
Acidentes deixam marcas: na música, eles podem ser vistos no canto esquerdo de uma partitura, logo depois da clave. Na gramática, são encontrados em deslizes cotidianos que nos escapam pelos dedos, como quando usamos crase antes de termos masculinos ou de verbos.
Já um acidente de percurso pode ser algo óbvio: um GPS falhando em razão de um sinal fraco, um caminhante desatento que anotou o endereço errado. Pode ser, também, algo mais poético: uma decisão equivocada, uma obra do acaso, uma surpresa.
A etimologia nos diz que "acidente" quer dizer "algo que acontece". E "algo que acontece" nem sempre é uma coisa ruim, né? Quase sempre, é algo que nem é ruim, nem é bom. Só acontece.
Numa orquestra, um simples acidente pode fazer uma música mudar de tom. Um concerto pode precisar de um conserto se um acidente acontecer na viela errada da partitura.
Tá legal, em alguns setores da indústria, do transporte e, sobretudo, das profissões que lidam com a vida o acidente deve ser evitado. Melhor: são inadmissíveis. É exigência maior de qualquer manual de instruções que eles nunca aconteçam.
Os acidentes de trânsito, os acidentes aéreos... esses dispensam as metáforas. São ruins em sua totalidade e não há filosofia que consiga demonstrar algo de positivo neles.
(...)
Um professor de Língua Portuguesa, desejando que os alunos entendessem de uma vez por todas a importância do cedilha, contou uma história cujo protagonista era um rei autoritário. Na narrativa, ao sair apressado para resolver um conflito no reino, ele havia deixado um recado a uma das empregadas da casa explicando o que teria que ser feito caso um de seus filhos se recusasse a ir para a escola.
Um deslize ortográfico, porém, tratou de sentenciar a história de um modo trágico.
No papel sobre a mesa, as palavras:
"Se não quiser ir à escola, leve-o à forca."
[Paulo Leminski]