Goleiro regular

Acho que sou um goleiro fracassado. Ou melhor: acho que sou um fracassado que queria ser um goleiro. Meu primeiro contato com esse ofício data da infância, quando ainda pequeno eu treinava em um ginásio poliesportivo perto de minha casa. Lá, descobri que a grande arte de ser goleiro não era só saltar para os lados, mas decidir, em uma fração de segundo, se o chute deveria ser parado com os pés ou com as mãos. Algo um tanto quanto óbvio, mas fundamentalmente útil para o resultado de uma partida de futsal.

Minha primeira experiência foi tão cômica quanto desastrosa. No primeiro treino que participei, no primeiro chute que dei, a bola foi para um lado e o tênis foi para o outro. A doce treinadora, num misto de surpresa e ternura, me chamou de canto. Incrédula com minha escolha de usar um tênis sem cadarço, pediu que no próximo treino eu viesse mais, digamos, bem equipado. Pedido que foi prontamente atendido, aliás, mas, convenhamos que o calçado era o menor dos meus problemas.

Tinha, sim, meus momentos de glória: lindos saltos para a direita ou defesas improváveis que minhas mãos faziam sem minha autorização. Reflexos, eu diria. Se como jogador de linha eu era uma piada, como goleiro talvez tivesse alguma chance de redenção, um fiapo de alegria.

Em alguns raros momentos, até recebia elogios de quem dizia que eu havia nascido para ficar embaixo das traves. Fato é que se eu havia nascido para aquela posição, eu morri cedo.

Não me tornei o goleiro que eu gostaria de ser, é verdade - nem o que pintavam as pessoas que me assistiam (talvez fossem apenas incentivos bondosos de quem tinha pena de um garoto sem jeito). Meu segundo treinador, entretanto, de apelido Nogueira - morador da mesma rua que a minha - e criador de calopsitas, resolveu acreditar em mim um dia e me presenteou com uma roupa personalizada própria para um arqueiro. Coloquei a roupa como quem veste um sonho.

Pela primeira vez, eu me senti um jogador de verdade!

Eis que no treino seguinte, por razões diversas, não pude mais comparecer ativamente. Era, ali, o fim de uma carreira que sequer havia começado. O término de um desejo que sequer havia sido desejado. A realização de uma defesa frente a um chute que sequer havia sido chutado. 

Paciência. Frustações nascem cedo.

(...)

Há dois anos, decidi voltar às quatro linhas, numa espécie de encontro semanal de jogadores frustrados com o esporte, mas ainda entusiasmados com a ideia que nos faz esquecer que já passamos do ponto mas que ainda podemos oferecer algo de engraçado a essa atividade de relevância planetária. 

Até agora, minha performance é regular: sou medíocre em todos os jogos. Regular como um relógio que atrasa, mas ainda funciona. Com exceção, é claro, dos dias em que, por alguma razão, eu salvo o time de algumas furadas (o que, para mim, é sempre uma remissão, uma vez que coloco meus companheiros em tantas outras roubadas ao longo das partidas).

No último encontro, duas jogadas me chamaram a atenção: na primeira delas, após uma linda sequência de passes no meio de campo, um ótimo jogador do time adversário finalizou com maestria em direção ao gol em que eu estava. Meio atabalhoado, espalmei a bola que, para minha infelicidade, voltou ao mesmo jogador. Dentro da área, ele finalizou novamente e, de súbito, eu rebati o chute para dentro do gol. A bola, todavia, havia passado por um um buraco da rede e deu a impressão de ter ido para fora.

Ninguém esboçou qualquer reação. Esperei o apito, mas jogamos sem juízes, portanto, não havia, em tese, nada fora da lei. Mas você sabe, há a lei dentro de nós e ela é mais importante que tudo! Antes que eu pudesse confessar meu "gol contra", a bola já rolava em outro canto do campo. Hey! Mas não tinha sido gol? O time adversário correu para o escanteio e o meu time correu para a área. Quando eu pensei em pedir a anulação do escanteio, informando a turma de que eu havia espalmado a bola para dentro da meta, a jogada já acontecia em outro lado e ninguém poderia me ouvir.

Pensei: “Conviver com o fracasso eu até convivo, mas com a injustiça? Jamais!"

Eis que, algumas jogadas depois, o troco: o mesmo adversário soltou um chute absolutamente forte e eu, com a destreza de quem aposta na sorte muitas vezes, num milagre tão raro quanto um eclipse, defendi. A bola saiu para escanteio. Levantei triunfante, pronto para ouvir os aplausos que minha defesa merecia. Mas, quando percebi, o time adversário comemorava o gol e o meu, por óbvio, lamentava. Todos em direção ao centro do campo.

Hey! Tinha sido gol? Como? E a minha defesa espetacular?

(...)

O equilíbrio é feito de parcialidades e o esporte sabe criá-las e devolvê-las sob medida, afinal, é essa sua premissa básica.

A justiça tarda, às vezes falha, mas quase sempre - de algum modo - compensa. É dessa trama de acertos e erros que nascem as histórias que contamos.


(...)

Para não me esquecer de lembrar:

1 -  "Dê lembranças a todos", uma breve história de Dorival Caymmi, é um documentário lindo que assisti na última semana. Apresenta a genialidade do baiano e a grandiosidade de seu legado musical e artístico.

2 - Minha última leitura foi "Meu quintal é maior do que o mundo", livro de Manoel de Barros e uma antologia de poemas que emociona e que traz o que eu chamaria de ostentação da simplicidade. Uma coleção de textos em que, como diz um dos escritos, "o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula I".

abraços!
06 jan. 25