Repetir o irrepetível
Li numa crônica que certa vez, Freddie Mercury, depois de sua pose teatral, percebeu que um fotógrafo tinha vacilado no clique. Criterioso, manteve a pose e fez um sinal com os olhos para que o profissional se posicionasse novamente e tirasse a foto.
O registro burloso não era mesmo capaz de eternizar fielmente aquele movimento, afinal, era algo forjado. Mas ao menos o rapaz conseguiu levar a foto para o jornal, né?
Sua inexperiência ou algum erro técnico da câmera não permitiu que ele fizesse o registro como assim exigia o espaço-tempo. Ainda que com a mesma pose, sua foto era diferente das demais e retratava um outro acontecimento. Duas pessoas, duas verdades.
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A gente às vezes não entende, mas a verdade é que jamais teremos essa habilidade de repetir o passado. Nosso limite é apenas encenar algo que já foi e achar que tudo bem, estamos novamente vivendo aquele sentimento. Às vezes basta, mas nem sempre.
O tempo, em seu trator gigantesco, destrói tudo aquilo que a memória ousou registrar. Traiçoeiro. Não há matéria mais resistente. O passado é espelho, um objeto. O futuro, uma representação semiótica, um signo. O poeta sobralense já avisava: tudo muda / e com toda razão.
Se voltássemos ao mesmo teatro para refazer essas fotos que aqui vos apresento, ainda que com todo o cuidado do mundo, não seria possível repetir esse instante. Mesmo se, segundos depois, viesse até nós uma nova chance a lá Freddie Mercury.
Esqueça! Cada segundo é único.
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Essas duas fotos são inesquecíveis pois trazem consigo uma lembrança única vista de dois modos. A primeira, sob a ótica do amigo Leandro Aquiyama (que se estivesse naquele show do Queen, não perderia nenhum clique tamanho profissionalismo e talento), exibe nossa gratidão pela resposta do público numa apresentação musical na minha cidade. A segunda, retirada de um vídeo da Cacau Filmes, apresenta um plano oposto, enigmático e distante do público, simbolizando algo lindíssimo que é o nosso antagonismo.
Ambas as fotos assinalam com inteligência a forma como os outros nos veem e, ao mesmo tempo, um espaço que nem cogitávamos existir. Pelo o que sei, nem Leandro, nem Tainah, da Cacau Filmes, acertaram os detalhes para esse abraço. Nem nós, aliás.
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Gosto de lembrar, com muito bom humor, o que o geminiano Ariano Suassuna disse quando foi acusado por um amigo de ter duas caras, afinal, era essa a característica principal do signo de gêmeos. Cismado, ele perguntou: "e você acha que se eu tivesse duas caras, eu usaria essa?"
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Os descuidos da espontaneidade me apresentaram rapidamente a figura de Jeff Marques, o primeiro (e o último) que aparece nas fotos. Um músico que não se prende a formas pré-estabelecidas e que recebeu nossa ingenuidade musical com muito carinho e respeito.
Fossem os encontros artificiais dos desencontros, não nos conheceríamos tão bem.
Um abraço,
tal qual o da foto:
espontâneo,
inesperado
e sincero
04 nov. 19