O que aprendi com o Flipoços 2024

Aprendi que Poços de Caldas tem aproximadamente 50 escritores, 6 livrarias e duas editoras. Aprendi que Joana D'arc foi levada à fogueira quando tinha apenas 19 anos. Aprendi que Maria Quitéria foi a primeira mulher do exército, direito que só em 2012 foi conquistado integralmente. Aprendi que há teorias que estudam a ideia de que algumas leis são criadas para promoveram a desobediência, para forçar algumas identidades a se rebelarem. 

Aprendi que Cristóvão Colombo relatou algumas de suas expedições em um livro. Que os Estados Unidos singraram rumo ao pacifico mapeando ilhas diversas e o próprio território (às custas de muita violência, imposição e crueldade).

Aprendi que nossa individualidade tem que estar sempre interligada com um propósito comum. Que as conquistas só são reais em teias que abrangem todos nós. Que Sócrates, de certa forma, era feminista.

Aprendi que, inevitavelmente, se um poder se opõe a sua missão, mesmo que sem querer, deixa um vácuo que pode ser ocupado por outra esfera de influência. Que o judiciário tem de deixar claro, por si só, os seus limites, às vezes. Que o poder, quase sempre, é algo irresistível - eu já imaginava.

Aprendi que só prosperá o jornalismo que apostar nas nuances. Que enquanto jornalista, deve-se buscar sempre a transparência - e nem sempre a imparcialidade, uma vez que nunca se pode alcançá-la totalmente - e, em linhas gerais, deixar também aparente o modo com o qual as palavras foram colhidas.

Aprendi que a autora norte-americana Emily Dickson, uma das maiores de todos os tempos, sequer imaginava que seus poemas seriam publicados e conhecidos um dia. Que a cidade de Araraquara significa também "morada do Sol".

Aprendi que é nosso papel valorizar o jornalismo pago, afinal, se pagamos pela música que ouvimos, se pagamos pelos filmes que assistimos, por que não pagar por algumas notícias que lemos? 

Aprendi, sobretudo, que toda ansiedade merece um abraço. Aprendi, especialmente, que o que a vida não nos oferta, a gente inventa. Aprendi que é da natureza humana buscar o reconhecimento. Que quase todas as tragédias que presenciamos são solitárias. Aprendi que, assim como existem as redes de apoio, infelizmente existem as redes de agouro. Redes que se originam do vazio humano despertencentes de tudo e de todos. 

Aprendi que o ser humano é afeito, de maneira embrionária, à solidariedade - pois dela se constitui e dela se apropria o tempo todo. Aprendi que um monge francês estudou por anos a influência física e psíquica da solidariedade (descobrindo que ela nos recompensa de maneira muito semelhante ao ganho que estimamos ter quando fazemos alguma atividade física). 

Aprendi que há um desafio ainda maior quando se faz uma biografia de um vivo, afinal, ela nasce pronta para se desfazer. Aprendi que John Kennedy tem centenas de biografias, assim como Marilyn Monroe. Aprendi que no Brasil, uma grande personalidade não tem mais do que dez. 

Aprendi que Tio Patinhas já organizou uma viagem à Lua e que Mickey já ajudou um músico de Blues nos Estados Unidos.

Aprendi que a música "Tiro ao Álvaro" foi censurada pela ditadura pois havia nela muitos erros de pronúncia e incontáveis equívocos da língua portuguesa - o que seria ruim para a educação dos brasileiros (como os censores eram burros, não é mesmo?)


Aprendi que Elis Regina foi visitar Rita Lee na prisão (imagine a cena!) e que adotou o cabelo curtinho para fugir do assédio. Aprendi que Elis demitiu - e com razão - a sua própria banda no palco! Aprendi que quando uma pessoa morre, morre junto dela uma biblioteca.

Aprendi que a postura corporal de um entrevistado dá sinais se ele está ou não à vontade com uma entrevista - e se, portanto, o entrevistador deve ou não prosseguir com perguntas incômodas. Aprendi que alguns cantores brasileiros são muros intransponíveis, como Chico Buarque - o maior prêmio para quem trabalha com música e que poucos conseguiram alcançar.

Aprendi, aliás, que Chico - e também Lulu Santos - recusaram-se a dar entrevistas para a biografia de Elis Regina - sem qualquer explicação ou argumento. Aprendi que Gilberto Gil não gosta de perguntas sobre sua saúde, que, por um tempo, evitava-se comentários sobre sexualidade com Ricky Martin.

Aprendi que, antigamente, o banho era visto pelas pessoas como algo muito negativo, pois supostamente a partir dele perdíamos a proteção do corpo, ficando suscetíveis à doenças graves. Aprendi que partos em hospitais, há muito tempo, eram realizados em ambientes sujos e sem qualquer tipo de higiene básica.

Aprendi que Maria Bethânia, certa vez, ficou incomodada com a artista americana Nina Simone, pois ela cobrava incessantemente o pagamento por um dueto que fizera com a cantora baiana, responsabilidade que, segundo Bethânia, era da gravadora.

Aprendi que um importante jornal de São Paulo até hoje não engole um também importante político brasileiro, coibindo jornalistas que insistem em referenciá-lo. 


Aprendi que esverdear, na linguagem do jornalismo, significa fechar a matéria. Aprendi que, há um tempo, se você pesquisasse "nurse" no Google, aparecia, em maior quantidade, enfermeiras - ainda que o termo significasse também "enfermeiro". Aprendi que a Kodak criou cartões (chamados Shirley) para facilitar a impressão das cores em papel fotográfico. "Shirley", entretanto, era uma representação de uma mulher branca e todas que não eram não "saíam bem" por conta desse padrão.

Aprendi que isso se chama racismo analógico e essa onda de preconceito velado só perdeu força quando a indústria dos chocolates pediu às empresas que mudassem o padrão de cor das câmaras, uma vez que não conseguiam fotografar seus produtos.

Aprendi que o livro Dom Casmurro não é só sobre um caso de traição. Que contar a história de um país é, em suma, revelar em qual mão estava o dinheiro da época. Aprendi que nos teatros gregos as mulheres não tinham intérpretes. Naquela época, homens interpretavam mulheres. 

Aprendi que língua é a cristalização do valor cultural de uma nação. Que, sem pensar, nem refletir, dividimos sempre o mundo em dois, alocando o que achamos ruim de um lado e, do outro, o que gostamos de maneira particular - e, por que não, egoísta.

Aprendi que a Nikon criou uma tecnologia que identificava se a pessoa havia fechado o olho na hora do clique, interrompendo a foto, esquecendo-se, no entanto, que havia muitos asiáticos no mundo que não conseguiriam fazer uma única foto com o aparelho.

Aprendi que música popular e erudita, que artesanato de rua e uma escultura de arte são, vias de regra, as mesmas coisas. Que quem define o que é bom ou ruim é, quase sempre, aquele que detém o poder. Entre tantas outras coisas, aprendi que quando você muda o acesso de um grupo a um espaço, você não muda só o grupo, você muda o espaço.


Aprendi que Robert Capa foi um correspondente de guerra e que muitas de suas fotos estão em nossa memória sem que sequer saibamos quem ele foi. Aprendi que ele foi o único a desembarcar no local onde aconteceu o maior massacre do tão conhecido "Dia D".

Aprendi que Amyr Klink, depois de atravessar o Oceano Atlântico em um barco a remo, decidiu ficar um ano inteiro na Antártica, chegando até lá em um veleiro. Aprendi que um matemático aposentado morreu rindo depois que uma divindade hindu surgiu da névoa e cravou uma espada em seu peito - coisas da ficção, você sabe.

Aprendi que a antiguidade clássica tem uma contradição: ecoam fortemente, nessa época, relatos de grandes batalhas e disputas infindáveis e, ao mesmo tempo, manifestam-se movimentos pacifistas e formas de preservação de todos os tipos de vida. 

Contradição ou consequência? Isso ainda não aprendi. 

Entre tantas coisas, aprendi a duvidar. E a enxergar o tempo como consequência da ação.

Foto: André Luiz

05 mai. 24