Futuro do pretérito

Escrevi o texto a seguir ouvindo essa música.

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Minha afilhada Cecília,


Até ontem, esperava pelo momento em que, oficialmente, me tornaria seu padrinho. Soube, entretanto, que eu já exercia esse título desde o momento em que seu pai e sua mãe me escolheram para tão honrosa missão. Ontem, fui um dos responsáveis por batizá-la e por tornar real essa concepção religiosa, humana e ecumênica. Não preciso dizer o quanto fiquei feliz com esse presente, né?

Seu batismo, ao menos para mim, está repleto de significados. A começar por sua madrinha, Elaine, que também é minha madrinha de batismo. Essa feliz coincidência que nos une mostra que o tempo - essa entidade que nos engana, mas que também nos envolve - sempre está por perto para nos mostrar o quanto cada momento é valioso e único. 

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Um velho autor que tanto gosto chamado Millôr Fernandes, ao discordar de um famoso ditado popular, teria proferido a seguinte frase: "Tá legal, se uma imagem vale mais do que mil palavras, tente agora dizer isso só com imagens!". 

Para que as lembranças não se desfizessem com o girar dos ponteiros, pedi que um querido amigo, o Wender Batista, fizesse os registros visuais do seu dia. Ao lado dessa coletânea de cliques, para fazer valer a afirmação do velho Millôr, decidi também escrever essa carta, elencando os principais acontecimentos desse vinte e seis de maio de dois mil e vinte quatro. 

Memória, fotografia e texto; presente, passado e futuro.

Ah! Antes que eu me esqueça: cartas eram correspondências manuscritas ou impressas que oferecíamos às pessoas nos últimos séculos. Por muito tempo, era a única forma de comunicação que tínhamos. Hoje, já em desuso, as cartas se transformaram em mensagens digitais que são enviadas sempre com a facilidade da tecnologia. Mas essas novas formas de comunicação, você sabe, são efêmeras, não marcam. Ou melhor: marcam, mas como se o texto fosse um sapato e a vida fosse a areia da praia. Pouco segundos tempos e o mar da cronologia trata de apagar para sempre tal pegada.

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Um velho poeta chamado Mário Quintana disse uma vez ter ficado impressionado ao receber uma carta de seu padrinho. E eu espero, também, que você fique feliz quando ler essas mal traçadas linhas que lhe escrevo (para lembrar outro velhinho, esse do rock, que talvez você também goste um dia).

A manhã começou chuvosa e com uma névoa que tratou de encobrir os prédios da cidade. Presumo ter sido, junto com meus pais, o primeiro a chegar na celebração que iniciaria o seu processo de batismo. Aos poucos, parte da família foi chegando e se aproximando do banco que eu estava, à esquerda do altar.

Na estrada à direita da igreja, vejo você chegar no colo de sua mãe, vestindo uma camiseta branca de manga longa e uma saia com detalhes em bege ou rosa claro. Os sapatos eram prateados e lindos. Entre sorrisos, inquietações e acenos rápidos, trocamos olhares distantes.

Quando, enfim, chegou a hora de receber a benção do batismo, você estava com fome. Tranquila no seio da vida, teve de ter seu momento de paz interrompido. Por poucos segundos, é claro. Em seguida, nos encaminhamos para o que chamam de pia batismal, local em que você receberia um pouco de água na cabeça.

Como você se comportou? Da maneira como qualquer um se comporta quando nos jogam água na cabeça sem a nossa permissão! Tudo normal, rito comum, barco rumando o caminho natural. Após esse incômodo, sequei os seus cabelos e ofereci uma pequena oração.

Depois, recebi uma vela que a ofereci como símbolo da luz da humanidade. Acho que você gostou muito, afinal, ficou olhando por um bom tempo a chama que teimava em chamar a sua atenção. Logo depois, apaguei a vela ciente da responsabilidade de que, a partir de então, eu seria um dos responsáveis por deixá-la eternamente acesa em você por meio do exemplo, dos gestos, da companhia e do cuidado mútuo.

Quando tudo acabou, me dei conta de que tudo estava só começando. Me tornei adulto mais uma vez. A responsabilidade passou a ditar os meus passos e o meu pensamento. A partir dali, passei a ser o seu padrinho de verdade. Que honra!

Encerro essa carta lhe oferecendo um poeminha daquele velho poeta que comentei acima. E algumas fotos. Para que mil palavras valham tanto quanto uma imagem. Para que essa carta se aproxime do que foi esse dia. Para que o ontem carregue um pouco do hoje. Para que o amanhã carregue consigo o sempre. 

(...)


Canção do dia de sempre
(Mario Quintana)

Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como essas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!










(...)

"Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida."

[Pensamento extraído do livro "Do Caderno H", de Mario Quintana. Porto Alegre, 1973].


Com carinho,
(do seu padrinho)
Matheus Soares
outono de 2024