Noites brancas - e quentes

Sempre achei "discrepância" uma palavra um tanto quanto estranha. Assim como "pâncreas", "esdrúxulo", "estrambótico" e "intrínseco". Tais termos, entretanto, também revelam uma obviedade: há beleza quando as pronunciamos de boca cheia, sem medo, ainda que sem a intenção de usá-las para causar impacto. 

Note: "Senhor, há uma preocupante discrepância nos níveis de insulina do seu organismo. Isso pode ter a ver com problemas estrambóticos no pâncreas. Não é preciso muito. Basta que hábitos esdrúxulos - intrínsecos ao comportamento humano muitas vezes - façam parte do seu cotidiano alimentar."

Hein? Não sentiu nada ao ler essa frase? Nenhum efeito colateral? Tá legal, eu sei o motivo: você não me ouviu falando! Tinha que ver - e ouvir - como pronunciei bem as sílabas! 

Ao enfatizar as tônicas, quase sempre damos às palavras significados diferentes, né? 

A entonação também é parte da gramática - ou deveria ser.

(...)

Dizem que não há como pedir para alguém sair de perto sem soar mal educado. Mesmo que você escolha delicadamente as palavras, o tom de voz, o momento oportuno para manifestar ilustre desejo. Rola sempre o risco de ser mal interpretado (ou interpretado integralmente bem, o que pode ser, às vezes, uma coisa ruim).

"Fazer-entender" é uma combinação de verbos que tem vida própria. Sempre há uma nuvem de contradições rondando quem deseja trilhar o caminho da língua, por mais simples que ele possa parecer. 

Pedregulhos gramáticos, você sabe. Autoimunes contra presidentes e presididos.

(...)

Há outros vocábulos por aí que chocam ouvidos e bocas. Por vezes, nem precisam ser absurdos fonéticos. Basta que manifestem algo ruim ou lembranças negativas. Para essa coleção de palavras, contudo, há milhares de sentenças particulares. Sem regras, sem métricas.

Tudo bem, pode até haver sinônimos que descrevam bem a mesma palavra só que de um jeito diferente, mais ameno. Poderíamos trocar "discrepância" por "contraste"? Talvez "esdrúxulo" por "bizarro"? Substituir "estrambótico" por "incomum"? Que tal "intrínseco" por "pertencente"?

Hey, mas e "pâncreas"? Na anatomia não rolam metamorfoses, né? Não há pra onde fugir. 

(...)

Estou lendo um livro que se passa no frio de São Petersburgo. Um romance em que um homem, durante um encontro episódico, resolve, enfim, oferecer (e, por que não, libertar) toda a sua angústia a uma mulher. Nos encontros subsequentes, rolam lindas dúvidas existenciais dignas de um inverno rigoroso, mas igualmente resplandecente - se me permite a discrepância.

Ao mesmo tempo em que leio tal história, decidi dar uma oportunidade a um livro de crônicas que comprei já faz um tempo. O autor, nascido no Rio de Janeiro, descreve histórias que criou ou presenciou no calor intenso e peculiar da cidade maravilhosa. Regado a sol, humor e carnaval. 

(Felizmente, a temperatura de ambos os livros me aqueceu a alma!)

(...)

Ah! Tive a curiosidade de saber qual é a distância geográfica de São Petersburgo até o Rio de Janeiro. A resposta? Mais de 11 mil quilômetros! 

(Na minha estante, a distância não passa de um metro!) 

Que estranho! Veja como a gramática é complexa e intrinsecamente estrambótica!

Imagem feita por Inteligência Artificial.

(...)

abraços
quentes e frios

22 fev. 2024