20 e poucos

Quando completei um quarto de século, me lembro de ter cantado a plenos pulmões o refrão: "tenho vinte e cinco anos, de sonho e de sangue, e de América do Sul!" Foi libertador, com o perdão do trocadilho histórico. Libertador não por esse ato reunir as características do autor da canção - sua luta e seu fascínio pelo lado menos privilegiado do Novo Mundo. Libertador em razão do desejo mais óbvio mesmo, estritamente particular - longe de qualquer profundidade - de anunciar a idade que passava a ter a partir daquele dia.

Anos se passaram, e me espanta o fato de que a canção continua estagnada nessa mesma faixa etária. Que estranho! Já passei dos vinte e cinco anos, mas não consigo cantar de outro modo! Ah, você sabe - e eu também sei - canções só envelhecem quando as armazenamos mal, em temperaturas inadequadas, em lugares incorretos. Talvez seja isso; continuo guardando-a no melhor lugar possível, mantendo-a jovem, inalterada.

(Talvez eu cante "tenho 35 anos, de sonho e e de sangue, e de América do Sul" daqui um tempo. Talvez. "Vinte" e "trinta" tem a mesma quantidade de sílabas, pode até rolar. Mas hey, e quando eu chegar aos quarenta e cinco? Adeus métrica? Terei de adotar outra música de estimação?)

(...)

Tá legal, fiz 29 anos no último sábado e essa idade ainda cabe no verso principal da canção. Sonhos ainda tenho um bocado, afinal, realizei poucos até aqui (ter êxito em muitos deles faz com que deixemos de sonhar, né?). 

A real é que gosto mesmo da vida simples que levo, das distâncias limitadas que percorro e do olhar panorâmico que ofereço a minha cidade enquanto continente a ser explorado. Por força desse destino, um tango argentino me vai bem melhor que um blues.

(...)

No tradicional evento musical que encerra o último mês do ano na televisão, ouvi outra música que trazia como tema central a idade. O refrão fazia referência a uma idade incerta, indefinida, como quando perguntamos as horas a um transeunte e ele responde que "são exatamente três e pouco". A exatidão nem sempre nos oferece respostas. Na vida tudo tem seu preço, seu valor.

Já faz um tempo, uma dupla episódica do mundo sertanejo mudou um trecho de uma canção clássica do gênero. Na faixa, o personagem exigia uma explicação, relembrando o casamento que ocorrera em 82. Na regravação, o matrimônio acontecia em 2002!

Eu sei, eu sei, na relação métrica das palavras - e até na rima - tudo casou muito bem - com o perdão do trocadilho conjugal. Mas em 1982, o mundo era outro! Em 2002, então, nem se fala. E em 2024? Tudo mudou, não é mesmo? E o mês passado, a semana retrasada... ontem? Nem me lembro mais.

Nessa distância quilométrica que sinaliza as transformações, valem trocas, ressignificações? Acho que sim, né? Ou não? 

Sei lá, o tempo tem suas amarras, suas âncoras... (mas também tem suas velas, suas engrenagens... suas molas propulsoras). Melhor deixar que ele mesmo decida.

(...)

feliz terça!
ou seria quarta?
quinta?
depende.
sempre
às vezes
(ou nunca).
abraços!