Me escutas, Cecília?

Foi em um teatro, num show de música, que te vi pela primeira vez. Sentado em uma poltrona vinho, me lembro de ter ficado vermelho de vergonha quando te avistei um pouco mais a frente, na lateral do auditório. Que honra! O acaso havia me protegido - e me presenteado - por ter me guiado pela distração. Decidi, portanto, não pensar em quais seriam as primeiras palavras que ofereceria a você. Sabe como é, não se estraga uma surpresa com um plano, né?

Primeiro sinal sonoro! Segundo sinal sonoro! Terceiro sinal sonoro! Luzes apagadas. 

(...)

Eu sei, eu sei, às vezes rola aquela confusão que nos faz correr atrás de respostas para perguntas que ainda nem foram criadas, atrás de planos para as surpresas da vida e, especialmente, de preocupações desnecessárias para problemas que ainda não existem. Será que, contrariando a canção dos anos dois mil, o acaso nos protegeria se andássemos vigilantes? Eu sei, eu sei... papo pra outra hora.

A surpresa só é surpresa porque nos pega na ponta da linha, sem avisar, como um tropeção no meio da rua que nos exige não só equilíbrio, mas um bocado de personalidade. Cair na rua e não se importar com as pessoas caindo na gargalhada é sinal de que estamos vencendo!

(...)

Ao final das apresentações, depois que as luzes do espaço passaram a iluminar novamente o teatro, vi uma luz ainda maior vindo da plateia. Era você, junto de sua mãe, surgindo em minha direção como um raio que emite luz na intensidade e temperatura exata. Como quando acordamos com o sol entrando devagarzinho pela janela, pedindo licença, pisando com as pontas dos pés. Luz que não cega, luz que não queima, luz que acalenta.

Ainda sentado na poltrona vinho, fiquei branco de nervoso! Afinal, chegaria, finalmente, o momento de trocar nossas primeiras palavras. Decidi apostar no silêncio -  e que decisão acertada, pois assim conversamos por um bom tempo, entre olhares, apertos de dedos e trocas simultâneas de carinho, cada qual do seu jeito.

(...)

Por falar em silêncio, seu nome é perfeito para ser dito sussurrado. Talvez um dos únicos que soe com ritmo e melodia. Melhor: um nome que é quase uma poesia em si. Ce-cí-li-a! 

Sua xará, a Meirelles, dizia que a canção era tudo. Que tinha sangue eterno a asa ritmada, e que um dia saberia que estaria muda: - e mais nada.

Hey! Mas que surpresa! Acabo de ler que seu nome tem a ver com música! Não poderia haver lugar melhor que um espaço cultural para te conhecer, hein!

(...)

Quis o acaso que nosso segundo encontro acontecesse na minha casa, no meu aniversário. O terceiro, no meio da rua, bem no começo do dia. O quarto em um outro aniversário. O quinto, ontem, no seu primeiro ano de vida, quando recebi de sua mãe e de seu pai o convite para ser seu padrinho. 

Um presente cheio de futuro que ainda não consigo retribuir. Na ausência de palavras próprias, evoco as de Chico (como o invejo, como o admiro), que cantou o seu nome como eu hoje gostaria de encantar.

CECÍLIA [Chico Buarque]

"quantos artistas
entoam baladas
para suas amadas
com grandes orquestras
como os invejo
como os admiro
eu, que te vejo
e nem quase respiro
me escutas, Cecília?
mas eu te chamava em silêncio
na tua presença
palavras são brutas."


09. out. 23