Texto sem título

Nem sempre as coisas se desnudam logo de cara, né? É preciso sempre um pouco de calma, um certo desapontamento e até uma dose de indiferença para que as coisas reais surjam espontaneamente, livres, dispersas. Eu sei, eu sei... a real é que a gente quer a resposta logo no primeiro parágrafo, quer aprender tudo na primeira lição e se esquece que a mudança mora na persistência, naquilo que é feito várias vezes. Não há segredo quanto a isso. 

Mas até aí, tudo bem! Chato mesmo é quando esperamos surpresas fazendo planos, quando aguardamos algo de onde nada pode surgir e, especialmente, quando esperamos transformações deitados com a cabeça encostada no sofá. Eternamente em berço esplêndido.

Nada contra, pode ser que em algum momento de nossas vidas isso, de fato, possa acontecer - seria um feito temporal que o gesto involuntário - e impreciso - da vida se orgulharia. A verdade é que não dá mesmo pra descartar nada, nem os planos, nem os assombros.

No trabalho, ouvi uma vez que um colega de profissão se ausentaria em um dia determinado pois teria um imprevisto. Logo quando ouvi a frase, pensei: genial! O cara sabe que vai ter um imprevisto! Ou se trata de um magnífico profeta ou de um ser humano absolutamente preparado para todas as intempéries da jornada da vida! Contra o tempo, avisado, no ponto! Imprevistos precisos! 

(Tá legal, pode ter sido só um deslize verbal na hora de apresentar uma desculpa para não ir ao trabalho, né? Sigamos em frente).

(...)

Recentemente, comprei um livro sem capa. Ou melhor: um livro com a capa mais intrigante do mundo. Nela, nada havia - e isso era tudo! Nem o nome do autor, muito menos o da obra. Apenas uma cor azul mar, exuberante, impressa num material duro, sem identificação de ano, editora ou coisa que o valha.

Minha salvação era a lombada, fragmento do livro onde, normalmente, se lê o nome da história. Havia ali, de forma bem opaca, quase que imperceptível, o título da narrativa. Tamanho mistério não se revelava somente pela idade da publicação, ao contrário: o exemplar era novo, assumidamente original na sua não-originalidade.

Li que, no passado, algumas editoras lançavam suas histórias assim para baratear o custo de impressão, promovendo - inconscientemente ou não - uma padronização de capas. Para que se soubesse a diferença de um livro para o outro, era preciso lê-lo. Nem que fosse a primeira página ou a folha de rosto!

(Hey, interessante, hein! Se não se pode julgar um livro pela capa, que dirá pela folha de rosto! Nem sempre a nossa verdade reside em nossas vaidades, né? Fôssemos avaliados pela nossa expressão facial - como sugere o nome dessa parte do livro - seríamos trucidados pelo jogo da futilidade, pelos mergulhos rasos, pelas decolagens baixas. Sigamos adiante).

(...)

Gilberto Gil tem uma canção que exalta o poder do repouso. O contraponto que faz a balança da ação se movimentar, girando em looping, confusa. Pois o que estimula na letra é exatamente o oposto do que muitos de nós cobramos de nós mesmos: empenho, energia, entrega, entusiasmo. No lado contrário do jogo, lembra que "tudo que é repouso lhe dará prazer. E que se Deus achar que ele merece viver sem fazer nada, que ele faça por merecer". 

Uma ode ao suspiro, ao vazio, ao nada... ao livro sem capa!

(...)

Ah, a primeira frase do livro sem capa que comprei dizia: "apenas os jovens têm mais momentos. Não me refiro aos muito jovens. Não. Os muito jovens não têm, a bem dizer, momento algum".

O autor prossegue: "o tempo também caminha - até que se percebe logo adiante uma linha de sombra avisando-nos que também a região da mocidade deverá ser deixada para trás. Este é o período da vida no qual os tais momentos de que falei costumam aparecer. Que momentos? Ora, os momentos de tédio, de desânimo, de insatisfação".

(Cara! Só essas frases já valeriam o livro todo! Com capa, sem capa... certamente eu sairia dele melhor do que entrei, mais jovem, com mais momentos).

Mas é isso. Falei demais hoje, né? Sabe como é, nem sempre consigo dizer o que sinto... assim, no ato, sem voltas. Por isso, uma dica: jamais julgue um livro pela capa. Julgue-o pela contracapa - ou, quem sabe, pela primeira frase. A surpresa é sempre mais interessante.

(...)

Prosa de fim de post:
1 - Como contraponto, devo dizer: adoro livros com títulos gigantes. Meu favorito é do David Foster Wallace: "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo".
2 - Miolo é o nome que se dá ao interior do livro: nele é onde moram as histórias. Vale também para as nossas vidas, não é?
3 - Por falar em livro, um dos mais cultuados na China (especialmente na filosofia taoista) - e, talvez, inspiração para a canção de Gil - lembra que 
se "nada é feito, nada fica por fazer. Domina-se o mundo deixando as coisas seguirem o seu curso."

abraços!
despretensiosos
(e organizados)
03. ago. 23