Corri ao lado de Vênus

Corri ao lado de Vênus. Como um mero mortal sem norte, como um andarilho do acaso, como um desesperado com planos. Tive sorte. Sei que durante o trajeto fui constantemente observado e avaliado, afinal, correr é uma arte. Parar também.

Também pudera: nada escapa aos olhos gigantes de Vênus. Intrínseco a ela, está a análise minuciosa dos passos, da velocidade e da inércia. Vênus é quente, está pertinho do sol, prefere o calor ao brilho. De cá, vemos apenas a translúcida característica de sua luz; um ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico (para lembrar a música do poeta).

Vênus é intensa, tem amor. E correr ao lado dela não é tarefa fácil. Uma força magnética parece puxar o nosso olhar ao seu encontro. Basta um descuido para que a deusa do amor surja em nossa visão periférica. Aliás, de periférica ela não tem nada! Está o tempo todo no centro, envolvendo tudo, todos e a atenção daqueles que preferem, por exemplo, correr ao entardecer.

(Não sei trato Vênus pelo masculino ou pelo feminino. Nah, tanto faz, né? Acho que ela se identifica com os dois termos, uma vez que é deusa e planeta).

Não é raro vê-la, mas é preciso um pouco de cuidado e dedicação, até porque nem sempre é hora de sair. Às vezes, em casa, ela pouco aparece. Nem sequer um aceno. Prefere o silêncio, a lona fechada, o portão trancado. 

A olho nu, é possível vê-la sem roupas. Ou ele, se você preferir. A olho vestido, é possível vê-lo sem lua. Deusa da beleza feminina. Ou Deus do calor e da pressão atmosférica. No retrato de família, tem lá suas semelhanças com um certo alguém, uma vez que carrega consigo pontos incomuns da nossa Terra com T maiúsculo, esse amontado de rochas, essa bola telúrica.

Assim que passei pelo planeta, me lembrei que meu dia estava terminando. O dele, só começando. Apenas em agosto é que ele completará essa corrida em torno do sol. Até lá, eu girarei, girarei e girarei muitas vezes. Correndo, parando, observando. À distância, na maior parte das vezes.

Sempre soube que a beleza de Vênus não pode ser ignorada. Ao contrário, que ela deve sempre ser admirada e notada. Toda essa feminilidade tem uma razão de ser: Vênus é direção contrária, é risco contra si, é pedra no sapato, é braçada contra a corrente. 

Um círculo e uma cruz. Juntos, ao mesmo tempo. Coisas que só o feminino consegue fazer.

(...)

Marte humanizado, que lugar quadrado.
vamos a outra parte?
claro - diz o engenho
sofisticado e dócil.
vamos a Vênus.
o homem põe o pé em vênus,
vê o visto - é isto?
idem, idem, idem.
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de conviver.

[O Homem: As Viagens. Carlos Drummond de Andrade. 1978]


abraços,
08. mai. 23