O tempo até o chão

Depois de um verão tímido, apagado - exuberante apenas nas chuvas - período novo. É o outono dando as caras, embriagando as folhas secas, perdidas e desamparadas, quase sem rumo. Longe de tudo, perto de todos.

Manhãs frias, noites gélidas. O sujeito solitário esquentou a mão com a outra, esfregando-a rapidamente, quase gerando fogo. Eis a síntese do calor: movimento, fricção, velocidade, contato, persistência.

Há, por aí, centenas de pessoas praguejando contra o frio. Outros, fazendo a cama na varanda. Sabe como é, a oportunidade alcança o destemido, o criativo. Quase sempre o preparado. Nem sempre assim, nem sempre assado.

No equinócio de outono, o sol se divide em partes iguais. Como se oferecesse a mesma oportunidade a todos. A mesma praça, a mesma sombra, a mesma luz. Pois notem: o sol nasce para todos que saem de si. Sem dó. 

O outono é uma foto antiga, amarelada, quase sem cor. Um pássaro voa pelos galhos de uma árvore seca e percebe que há algo diferente. Ou melhor: que não há algo diferente. A cor foi viajar. A vida das flores pediu descanso.

Em alguns lugares, neva. Em outros, nada. E isso pode ser tudo. Como tudo na vida. As intempéries tornam-se notas sustenidas: estranhas se percebidas num único toque. Mas as folhas... ah, as folhas! Continuam a cair, mesmo já no chão, contrariando a gravidade.

Sem essa de melancolia! O sereno é só um alerta. O outono é só um intermédio. Um ponto entre outros pontos. Uma ponte rumo a outra ponte (que, com sorte, dará em outra ponte). Vida e morte pulsando juntas. Descanso e ação trabalhando no mesmo andar.

Somos do ramo: folhas secas caindo das árvores, pairando no ar. O tempo até o chão: é o que aprendemos a chamar de... vida.

quantas vezes a gente, em busca da ventura,
procede tal e qual o avozinho infeliz:
em vão, por toda parte, os óculos procura
tendo-os na ponta do nariz!

[Mário Quintana]

abraços,
20. mar. 23