Demora, mas vem

Em uma cidade próxima ao Círculo Polar Ártico, o sol está dando as caras só agora em março. Por lá, de novembro a fevereiro, todos os dias são noite. Não há luz, o frio é intenso e por 24 horas a obscuridade é a bola da vez. Os ventos violentíssimos, tais quais as sensações oriundas de um vazio típico da madrugada, afastam as pessoas das ruas e demovem qualquer tipo de relação social.

Essa escuridão densa e duradoura faz com que os moradores enfrentem desafios peculiares. Estarão acostumados com a falta do nosso astro rei? Perguntam, a si mesmos, se o sol desistiu de visitar aquele lugar? Eu sei  - e eles, principalmente, também sabem: ele demora, mas vem.

Metaforicamente, a cidade escura serve como exemplo para caminhos sem luz e temperaturas extremas do nosso dia-a-dia. As ruas de nossa alma, em momentos de adversidade, parecem congelar-se num tempo sombrio, envoltas numa espécie de manto que encobre as articulações dos movimentos, deixando-nos sós, com frio e lentos.

Mas o sol, você já sabe: demora, mas vem.

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Pibloktoq é o nome de uma síndrome que acomete moradores dessa comunidade. Por habitarem uma região praticamente inóspita, por não verem com frequência a luz do sol, passam a compreender o mundo, mesmo que momentaneamente, de um modo próprio e problemático.

Um dos sinais manifestados é a falta de sensibilidade ao frio (por lá, no inverno, a temperatura pode chegar a -50ºC). Além disso, a Histeria Ártica (como também é conhecida) se caracteriza por um período de agitação intensa que pode até causar a morte. Fatores estressantes e a ansiedade são possíveis causas desse problema. 

(Não poderia ser diferente, né? Sem luz, parece não existir vida. Mas hey, mesmo fraca, incipiente e indefesa, sempre há alguma coisa pulsando com entusiasmo, não é?)

A vida nunca desiste dela própria. Quase sempre somos nós a abandonar o barco. 

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Os habitantes dessa cidade, digamos... anômala, aprenderam a conviver com a falta de luz. Ou melhor: para eles, não há falta. A luz existe, mas não o tempo todo. E isso é uma realidade indelével (e, porque não, admirável).

Nosso erro, às vezes, é achar que a luz sempre iluminará nossos caminhos. Ao contrário, né? Será pouco o tempo em que ela assim o fará. Quase sempre ela estará ou distante, fraca, difusa, ou exagerada, forte, irradiada, o que não é bom para os nossos olhos. Equilíbrio para tudo e todos. Sempre que pudermos.

Essa assimetria entre luz e sombra é o resumo do antagonismo que abrange todas as nossas ações. Serve até como base para atividades como a fotografia, o cinema e a música. Trajetórias inconstantes e soturnas são convites para a criação. Molas propulsoras.

Desejar uma vida repleta de luz parece ser uma boa pedida, mas cuidado: em exagero, ela nos cega, nos tira do eixo e de si. Equilíbrio - olha ele de novo - para todos as nossas rotas. Sempre que possível.

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Aliás, perspectivas existem não para sabermos o lugar onde queremos chegar. Existem, sobretudo, para nos indicar o lugar de onde partimos. Se tivemos luz no caminho, não importa. Quase sempre a trilha precisou ser percorrida. Com ou sem obstáculos.

Afinal, ofuscamento e resplendor são casas vizinhas, moram lado a lado. E a vida corre como a luz do sol. E chega, palpitante, na hora certa. No momento certo. Quando for a hora.

Ainda bem que sempre haverá luz... mesmo na escuridão.

“Campo de trigo com ceifeiro e Sol”.
Pintado quando Van Gogh estava internado em um sanatório.

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13. mar. 23