Pense em um dia com gosto de jaca
Pois é. Sabe quando a gente sente algo novo e diferente que não consegue definir? Das duas, uma: ou não sabemos explicar mesmo aquele sentimento ou não sabemos o que de fato estamos sentindo. Nem sempre os dicionários nos salvam, né? Às vezes, são eles os primeiros a instigarem as maiores dúvidas.
Ao traduzir e reescrever uma famosa canção dos Beatles, Raul Seixas começou com a frase: "Pense em um dia com gosto de jaca". Seu produtor, logo de cara, pediu que mudasse o trecho, achando-o sem sentido, esquisito. Raul retrucou, defendendo sua aura criativa: "Então você me explica por que é que estou com gosto de cabo de guarda-chuva na boca." No fim, a música ganhou um novo início, tão sem sentido quanto o primeiro. Nem tão original, mas igualmente misterioso.
A gramática sempre foi um organismo vivo, uma evolução estranha do que as ruas falam. É, entre outras definições, um reflexo do que elas também deixam de falar (ou do que elas são incapazes de definir). Distinguir as coisas é tarefa fugidia, coisa de gente grande. Nem sempre é fácil dar a elas nomes certeiros e sem dubiedades. Restam as alegorias, as figuras de linguagem, as metáforas.
Costumo sempre pensar em que gosto poderia ter a sensação que estou sentindo. Até que me surja alguma resposta interessante, trago aquele desconhecido fenômeno para um jogo. Se algo me acomete de fora para dentro, procuro associar tal desconhecimento diretamente a alguma coisa que já comi ou a algum cheiro que já senti. Eu sei, sem essa de receita de bolo. A vida - e como tentamos resolver seus dilemas - sempre foi mais do que isso.
Mas esses dias mesmo tive a sensação apavorante de ter tomado um lata de Coca-Cola fervendo - sem nunca ter conhecido essa experiência. Foi horrível! A barriga cantarolava coisas incomuns (como se eu tivesse comido uma barra de ferro), o estômago parecia querer expulsar um monstro que acabara de nascer e a cabeça só pensava em como tirar aquele gosto ruim da boca.
Os médicos poderiam me recomendar um remédio para má digestão. Os psicólogos poderiam me sugerir uma sessão de terapia. Os curandeiros poderiam apresentar soluções à base de ervas. Os poetas poderiam me indicar uma boa poesia. Alguns poderiam apenas aconselhar o silêncio.
Eu sei. A linguagem é o que é: uma esfinge que devora até quem a decifra. Uma esfinge que decifra até quem a devora. Contra ela, não há regras. Ou se há, são insuficientes. Diagnósticos precisos para designações imprecisas. Jogo sem vencedores.
Ainda bem que podemos sonhar.
Prosa de fim de post:
1 - Terminei o texto ouvindo essa música.
2 - As ilustrações acima foram criadas pela mais nova linguagem do momento: a Inteligência Artificial. Nas imagens, há uma mistura de Beatles, Raul Seixas, Coca-Cola e jaca. Sabe-se lá o gosto que tem isso. Mas dá pra imaginar, né?
um abraço,
13 fev. 23

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