Belchior: como é comum em nosso tempo
Descobri Belchior já em seu exílio. Longe da imprensa, das pessoas e da música. Coberto de mistérios, devoções e curiosidades. Distante de tudo aquilo que um dia sonhou conquistar - perto, entretanto, do caminho que planejou trilhar ao longo de toda sua vida espiritual.
Belchior era uma esfinge e decifrá-lo não era mesmo uma tarefa fácil. Seria monge, depois tentou ser médico. Tornou-se filósofo e, depois, compositor. Ou tudo isso. E muito mais. Um cantautor repleto de histórias e alucinações. Trazê-lo sempre de volta ao nosso cotidiano é missão fácil - e necessária - já que às vezes o passado pode ser coisa do presente também, do futuro talvez... de um tempo que está ali congelado, à espera. À espreita. Como Belchior.
O Bob Dylan brasileiro, segundo Gilberto Gil. Ou seria Bob Dylan o Belchior americano como o próprio artista um dia supôs? História de gente grande, eu sei. Em um encontro no Rio de Janeiro, Dylan disse a Belchior: "Quero ouvir seu álbum. Trouxe um?". Ao voltar para casa, Belchior disse para a esposa: "Estive com ele. Dylan, Dylan, Dylan!". Todo ídolo também é fã.
O compositor de Blowin in the Wind e Nobel de Literatura, aliás, também ofereceu a Elis Regina um apelido carinhoso: "little pepper". A nossa pimentinha! Elis também foi uma personagem marcante na carreira de Belchior. Quando conheceu o cantor de Sobral, pediu a ele que fosse até a casa dela para apresentar algumas composições. Belchior fez algumas exigências, recomendando a ela que, se morasse longe, já o avisasse desde cedo para que ele pudesse sair com antecedência de onde estava. “E se o convite for feito para uma hora especial, que seja a hora do almoço ou do jantar”, encerrou.
Caetano Veloso, um de seus "adversários", sempre o exaltou. E sempre foi exaltado! Belchior nutria pelo tropicalismo uma espécie de aversão, já que sua intenção era fazer exatamente o contrário do que faziam. Não para ser transgressor, mas para ser diferente mesmo. Outra grande história de gente grande. Quando da morte do cantor cearense, Veloso escreveu que suas canções não eram das que morriam.
Em 2015, se não me falha a memória, ouvi uma versão de "Paralelas" cantada pelo também genial Erasmo Carlos - que, aliás, optou por colocá-la na estante de suas interpretações que não fizeram tanto sucesso. O álbum era o "Meus Lados B".
Em entrevistas e depoimentos especiais, Erasmo contou que foi o primeiro a gravar essa tão conhecida música, em sua criação primária, com trechos diferentes da versão cantada por Vanusa. A mudança é bastante significativa e dita os rumos da mensagem final. Quando descobri que existiam duas versões, fui atrás dessa veia poética do cantor, percorrendo as estradas visuais que criei e pavimentei, nesse mundão de distâncias e proximidades.
A voz anasalada de Belchior deu corpo e vida ao pensamento rebelde e liberto que sempre o acompanhou. Voz que nunca andou na linha, que sempre se impôs ao perigo. Som que jamais perdeu o tom, que nunca se desfez do rumo que sempre foi um objetivo, uma meta.
Belchior é o sex-symbol sem jeito, o cearense sem casa - mas com causa - o monge sem paciência para o mundo, o médico das almas desapontadas - como era comum em seu tempo, como é comum em nosso tempo.
Sempre um homem das boas esperanças. Mensageiro do silêncio e enunciador do caos: o próprio e os dos outros. O eterno transitório, aquele que vem e vai. Aquele que foi e voltará.
Aquele que ainda está aqui.
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| Foto: Dulce Helfer |
abraços,
abril 30, 2022
