Dias de luta, dias inglórios
Bartolomeu Dias, um navegador português, foi o primeiro a dobrar, há mais de quinhentos anos, um portentoso cabo no Oceano Atlântico, um encontro quase que explosivo com o Índico, permeado por montanhas planas, gigantescas e aterrorizantes para qualquer explorador atrevido.
Dias, ao conquistar tamanho feito - como quem acabara de pisar na Lua pela primeira vez, colocando uma bandeira para marcar território - decidiu dar ao local um nome: Cabo das Tormentas. A explicação prática é quase óbvia, afinal, o lugar era uma região repleta de obstáculos, tempestades e movimentações intensas; um aglomerado de coisas ruins.
Nome justo, devo dizer; um batismo de corpo e alma, envolto numa aura nublada, mas de triunfo e coragem. O nascimento do sol depois de uma torrencial chuva de azares. O surgimento de um caminho depois uma longa caminhada sem rumo. Até ali, acreditava-se que o mundo terminava na África. Depois disso, nada, fim dos mapas e do planeta.
Ao voltar para Portugal, o navegador disse ao rei D. João II que havia, enfim, obtido o tão sonhado êxito, cobiçado por impérios do ainda pequeno planeta. A corte real, entretanto, não gostou do nome. De Cabo das Tormentas mudou para Cabo da Boa Esperança, já que a vitória possibilitou "reacender a boa esperança de chegar a Índia pelo mar".
Fácil, né? O cara enfrenta todas as intempéries, infortúnios e o chefe dele, no alto de sua realeza, ignora as lutas, os treze dias navegando à deriva, ao sabor do acaso, e ressignifica toda a trajetória renomeando a tormenta de esperança? Mundo injusto, eu sei, desde o século 16, desde ontem, desde sempre. Dias de luta, dias inglórios.
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Tá, eu entendi. Duas pessoas, duas verdades. Um pouco de marketing não faz mal a ninguém (ou faz?)
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Cristóvão Colombo, navegador italiano - mas liderando uma frota espanhola - chegou aqui, na América, em 1492. Outro grande feito, outro grande passo para humanidade. Um "mundo novo" nascia, se originava, dava as caras, minuciosamente belo e surpreendente.
Naturalmente, por ter chegado antes de qualquer um, seria razoável acreditar que o nome daquela nova terra poderia ser o de seu descobridor (Colômbia, talvez?). Mas não, isso não aconteceu.
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Américo Vespúcio era seu nome. Não era apenas um rapaz, era um homem rico, de posses, com parentes importantes. Um sujeito culto, elegante e que escrevia muito bem. Na expedição que chegou ao Brasil, foi um dos integrantes, junto de Cabral e sua turma.
Ao chegar aqui, escreveu uma carta em que descrevia as belezas que avistara, os rituais nativos, a natureza, o clima, o espírito daqueles que o receberam, entre outras características que apresentava ao mundo conhecido o recentemente descoberto mundo desconhecido.
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Colombo descobriu a América, mas quem a inventou foi Américo Vespúcio.
Fácil, né? O cara descobre um continente, tira das sombras uma porção de terra a duras penas e quem dá nome ao lugar é um cara bonito que escreve bem? Mundo injusto, eu sei, desde os seus primórdios, desde o descobrimento, desde sempre. Dias de luta, dias inglórios.
(Fernando Pessoa)

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