Vossa comida chegou!

Estranho demais presenciar as mudanças históricas acontecendo, assim, debaixo dos nossos olhos, né? Ignoradas ou vistas sempre do lado de fora, revoluções sociais muitas vezes não são perceptíveis em vida. Analisar um fato com frieza e tirar dele os resultados mais transparentes possíveis é uma tarefa um tanto quanto difícil para nós, meros mortais.

Portanto, como explicar o retorno triunfal do obscurantismo? Como compreender o clamor pela volta autoritária de regimes retrógrados e violentos? O que fazer quando o senso comum ultrapassa o seu limite colocando em xeque o papel da pesquisa? Pra ciência, meus amigos, paciência. Para as mudanças também. Esse é um jogo que se aprende jogando.

(...)

Foi numa terça de carnaval de 1557 que o livro "Duas Viagens ao Brasil" foi lançado. O alemão Hans Staden é autor e, ao mesmo tempo, personagem, dessa história, eu diria, deliciosa! Conhecida como a mais bela narrativa do famoso banquete antropofágico, a história de índio comendo gente fez parte de algumas semanas da minha quarentena.

Na escola, aprendi a respeitar os índios e em todo 19 de abril me lembro de fazer cartazes comemorando esse dia. Até fantasias com penas e cocares eu confeccionava! A lição maior, entretanto, eu aprendi depois de velho: que dos cinco milhões de índios que viviam aqui, restaram apenas oitocentos mil. 522 anos depois já é possível atestar que foi um genocídio, né! Está sendo desde então.

(...)

Em tempos de ascensão do que se conhece hoje por delivery, naquela época, saber que a comida estava chegando significava presenciar um momento, no mínimo, engraçado. Conta Staden que os homens que seriam devorados chegavam pulando de um lado para o outro cantando: "Eis a vossa comida chegando, eis a vossa comida chegando!"

E foi na região de Ubatuba, litoral de São Paulo, que tudo isso aconteceu. Lá viviam os índios tupinambás e o autor alemão foi o primeiro a relatar como se dava a convivência desses nativos. O ápice desse encontro está descrito nesse trecho:

"Quando eu estava andando na floresta, eclodiram grandes gritos dos dois lados da trilha, como é comum entre os selvagens. Os homens vieram na minha direção e eu reconheci que se tratava de selvagens. Eles me cercaram, dirigiram arcos e flechas contra mim e atiraram. Então gritei: “Que Deus ajude minha alma!”. Nem tinha terminado estas palavras, eles me bateram e empurraram para o chão, atiraram e desferiram golpes de lança sobre mim. Feriram-me – Deus seja louvado – apenas numa perna, mas me arrancaram a roupa do corpo, um deles o casaco, um outro, o chapéu, o terceiro, a camisa, e assim por diante."

(...)

Só fui me dar conta hoje que há quatro anos eu havia pisado talvez no mesmo lugar onde Staden foi capturado pelos índios. Ops, sem spoilers. Sim, eu sei, pode não ter sido exatamente ali, mas foi para onde minha história imaginária me levou. 

Estranho demais presenciar as mudanças históricas que aconteceram, assim, com a verdade bem debaixo dos nossos pés, né?

o mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
o único mistério é haver quem pense no mistério.
quem está ao sol e fecha os olhos,
começa a não saber o que é o Sol
e a pensar muitas coisas cheias de calor.
mas abre os olhos e vê o Sol,
e já não pode pensar em nada,
porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
de todos os filósofos e de todos os poetas.
a luz do Sol não sabe o que faz
e por isso não erra e é comum e boa.

(Há metafísica bastante em não pensar em nada. Fernando Pessoa)

Foto: Gustavo Henrique

Ah! Antes que eu me esqueça, há dois anos nos despedíamos de Moraes Moreira, aquele que antropofagicamente cantou que sua carne era de carnaval e que o coração era igual. Desse modo humanamente incrível, devorou culturalmente aquilo que o unia enquanto ser e que o eternizou como elemento da música brasileira.

Não precisa tanto para sabermos que foi um gênio. Para alguns, a história não precisa de muito tempo. Basta algumas décadas e pronto, está marcado para sempre!

"o tríplice mistério do stop
que passo por e sendo ele
no que fica em cada um
no que sigo o meu caminho
e no ar que fez que assistiu
abra um parêntese, não esqueça
que independente disso
eu não passo de um malandro,
de um moleque do Brasil
que peço e dou esmola
mas ando e penso sempre
com mais de um
por isso ninguém vê
minha sacola."

Abril de 2020
2022