Colherinhas de café

(21 mar. 2020)

O verão acabou de passar
E as folhas ainda estão nos galhos
Vemos os pássaros amanhecerem
Vemos os ventos se aquecerem
Passei o dia todo correndo
E pensando em como te contar
Que não importa quanto tempo
Quanta gente, quanta casa
Não importam os cachorros 
Nem me fale dos governos

Fiquei andando e pensando
Jogando e bebendo gim
Tentando lembrar há quanto tempo
Quanto tempo?
Quanto tempo ainda?
Tenho aqui só o esboço 
Que em cinco dias estará pronto

Começo agora
Durmo
Faço de novo
Mas de hoje não passa o esboço.

Tá confusa a vida
O sorriso, amarelo
Óculos, que não são meus
Os cabelos, bagunçados
Fotos, dor, graças
A cócega, a vista, 
a paz que não é minha.

Lá no quarto, a cama
Os lençóis, a cortina 
e uma xícara de café frio

Eu tenho medido a minha vida com colherinhas de café

Ontem eu trabalhei
Amanhã talvez não
Tá confusa a vida
Nem um carro parado
Mas os bares vazios
As praças vazias
As bancas de jornal vazias
Como bancas de jornal

Os cafés não abrem mais
Os músicos ficam em casa
Tocando baixinho
Chorando de dó
Pra não acordar o vizinho
Só os pássaros ainda amanhecem
Só os ventos ainda se aquecem

Quanto tempo?
Quanto tempo ainda?

É como se eu fosse o cavaleiro
E lá no alto os moinhos
Rugindo, batendo suas asas
Cuspindo fogo 
Então, eu me apresso
Cavalgo até eles 
Bradando uma espada de vento
Num cavalo de vento
Com a cabeça de vento
Mas não tem moinho
Nem asa, nem fogo
Só o tempo
(e a minha velha cabeça de vento)

Em quinze minutos já é amanhã
E o esboço vai dormir
Pra amanhã andar
Jogar e beber
E pensar em te contar
Que não importa o tempo
Os moinhos não importam
Nem as músicas
Nem os cafés, nem as praças.

Ele olha pros lados
Não é mais Shakespeare
Não é mais Dante
Ele só está cansado
Gordo entediado com seus pés redondos
Sua sala bem decorada com livros
De capas de pano e quadros
De fotos sem caras e discos
De músicas quietas sem vozes

A palavra que está aqui não é barroca
Não é clássica não é neo
É só palavra escrita sem freio
Dez minutos e é amanhã.

E a minha vida?
Medida com colherinhas de café

Escreve, apaga
Escreve de novo
Apaga

"Vem dormir, tô com sono"
"Vem logo, já é meia noite"

Às vezes me espanto
Como posso ter acordado aqui?
Se ontem mesmo eu só tinha medo do escuro
Um cobertor velho e medo do escuro.
Se desse pra voltar com certeza o faria
Pra ver onde ia acabar
Provavelmente gordo
Com os pés redondos numa sala bem decorada
Mas os lençóis e a xícara de café não.

A vida está estranha
A avenida não para
Vai e vem, vai e vem
Mas as pessoas estão vazias
Como bancas de jornal
"Não sai de casa"
"E compre tudo o que puder"
Dois minutos e é amanhã...
Eu disse que me lembraria.
Bom, agora não importa
Nem sei como te contar
Que realmente não importa.
Nem as pessoas vazias
As capas de pano
Nem as fotos
Nem os discos importam

Obrigado por ontem
Já é amanhã.

Office in a Small City, 1953. Edward Hopper