Por quem os sinos dobram?

A impressão que dá é que alguém, enfim, desligou a TV, tirou o roteador da tomada e apagou a luz do nosso quarto. Sem saber o que fazer, apenas aceitamos – sem questionar – essa inédita intromissão. Dentro de nós, uma incompreensão perfeitamente irritante que nos obriga a mergulhar de volta nas mais intrínsecas estradas da alma.

Foge ao nosso entendimento, ao mesmo tempo em que salta na nossa frente, a pálida certeza de que sobrevoamos um campo tenebroso no que diz respeito à vida. Na quarentena quaresmal, cristãos e ateus se unem como nunca antes se viu. Fiel escudeira das vitórias, a esperança dança suavemente um tango argentino. Ninguém é uma ilha.


O malware dos tempos modernos tem nos apresentado uma obviedade: moramos no mesmo planeta, mas vivemos em planetas diferentes. Cada ilha delibera suas regras, quando pode. E quem, por ventura, não tem esse privilégio, é levado pela tempestade da não inclusão. Aspectos globais que dão as caras nas crises. Todo mundo é uma ilha.

Agora que está tudo desmascarado – e que enfrentamos, de fato, um problema comum – há muito o que fazer. Combater lorotas digitais e recolher-se cada um dentro de seu próprio eu é uma ótima pedida. Aceitar o revés e transmitir via satélites mentais toda a positividade que paira sobre a órbita do bem. Metáforas. São elas que sempre nos salvam.

(...)

O poeta beat Lawrence Ferlinghetti, aliás, completa, hoje, 101 anos. Nada a ver com o assunto, tudo a ver com minha reclusão. Salve!

“correndo risco constante | de absurdo e morte | toda vez que atua em cima | das cabeças da audiência | o poeta sobe pela rima | como um acrobata | para o poleiro ainda mais alto | onde com gravidade a beleza | espera para dar | seu salto mortal.

(...)

Em meio a solidão gerada pela ausência de tráfego, perambulam livremente por aí pestes que enfestam a percepção das coisas. Não há carros, mas há a corrida da desinformação; não há pessoas, mas há robôs mal-intencionados brecando a compreensão do real; não lazer, mas há prazer em distorcer os fatos.

Um luz fraquinha, quase imperceptível, suspira dentro de uma lâmpada. Ainda há tempo. Sua intensidade não é capaz de iluminar uma cidade, mas com muito capricho é inacreditavelmente pujante para iluminar o passo seguinte. O lampejo. O sinal. O piscar de olhos. Deem o nome que quiserem. É atrás disso que sempre estou.

"se é o medo que te move | não se mexa, fique onde está |
se é o ódio que te inspira | não respire o ar viciado desse lugar".

Soube antes dessa publicação que o líder que não lidera, ordenou que as pessoas voltassem às suas atividades numa pretensa e tresloucada decisão. Gesto que vai ao encontro desses tempos sombrios. De maneira embriagada, vemos um doido entontecer nossa caminhada. Mas há de vir novos caminhos, caros amigos. Coragem, coragem!

“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar dos teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” John Donne

(...)

"nunca se vence uma guerra lutando sozinho
você sabe que a gente precisa entrar em contato
com toda essa força contida é que vive guardada
o eco de suas palavras não repercutem em nada
é sempre mais fácil achar que a culpa é do outro
evita o aperto de mão de um possivel aliado, é
convence as paredes do quarto, e dorme tranquilo
sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo
coragem, coragem
se o que você quer é aquilo que pensa e faz
coragem, coragem
eu sei que você pode mais
é sempre mais facil achar que a culpa é do outro
evita o aperto de mão de um possível aliado
convence as paredes do quarto, e dorme tranquilo
sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo
coragem, coragem
se o que você quer é aquilo que pensa e faz
coragem, coragem
eu sei…"



Março de 2020