Os loucos da estrada e os que nunca bocejam

Sou um estradeiro fajuto. Embora amante de uma boa caminhada, sempre tive um pé atrás com o lance do pé na estrada. Não tenho carteira de motorista, nem vontade de ter. Gosto mesmo é de andar na rua e de fazer os meus trajetos a pé. Acompanhar o crescimento dos edifícios e observar as mudanças da arquitetura urbana são alguns de meus passatempos favoritos.

Dia desses, quase cometi a indelicadeza de não cumprimentar uma amiga especial que cruzou o meu caminho. Envolto no encanto tritão de Bob Dylan, viajava pela estrada do entusiasmo sem perceber que estava mesmo caminhando na rua Rio Grande do Sul, próximo ao Terminal de Linhas Urbanas da minha cidade. Nobody has ever taught you how to live out on the street.

Like a Rolling Stone, aliás, é uma canção formidável que inexplicavelmente desperta em mim uma vontade louca de, ao mesmo tempo, deixar o cabelo crescer, lavar todas as louças da casa e mudar o mundo. Dylan e seus dilemas.

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Também conhecido como bíblia hippe, On the Road, de Jack Kerouac, representou os anseios daqueles que fizeram da vida uma estrada sem fim. Símbolo do movimento norte-americano conhecido como Geração Beat, o livro, ao lado de outras grandes obras, buscava a invocação da liberdade como objetivo de vida. Estrada, caminho, trajetória... a associação é pouco original, mas sugestiva, né?

Entupido por benzedrina e café, Kerouac usou e abusou de uma prosa pautada no fluxo livre de consciência, descrevendo algumas de suas viagens pelos Estados Unidos e México. As excursões e caronas malucas recheadas da tríade profana sexo, drogas e rock’n roll dialogavam com uma trilha sonora inédita ritmada pelo ar puro e pela procura espiritual de chegar sabe-se lá onde.

Carona, lembra Leindecker em sua música título, a gente pega e não escolhe onde vai parar. O ideal caronesco e libertário era outra característica de estradeiros como Allen Ginsberg, William Burroughs e Lawrence Ferllinghetti. Autores que conheci nessa estrada apaixonante que é a literatura. Estrada, aliás, que percorro sem medo, like a Rolling Stone.

Saber onde se vai chegar, lembrou o existencialista Sartre, nem sempre é uma boa saída. Um pouco de dúvida é o preço que se tem de pagar pela pureza. Riscos que a alta estrada impõe a quem se atreve a penetrá-la.

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Tirei os fones para ouvir e conversar rapidamente com a amiga que encontrei. Ela me contava que naquele dia estava se preparando para... viajar! Concordamos que tudo tinha um significado. A longa estrada até aquele destino a faria rever um grande amigo. É, sobretudo, a lei dessa infinita highway.

Aliás, são tantas, né! Highway 61, de Bob Dylan, é cenário para a morte do filho de Abraão. Highway to hell é a Terra Prometida do ACDC. Comentários a respeito de John, de Belchior, é a alma livre e apaixonante da rebeldia. As curvas da estrada de Santos é onde Roberto Carlos tenta esquecer um amor que na distância se perdeu.



Mesmo avesso a deslocamentos muito longos, não fumante e meio bobo babão, viajei na tortuosa e verborrágica estrada profética dos escritores beats, estacionando caprichosamente minha atenção nas histórias controversas daqueles que optaram pelo caos.

William Burroughs, por exemplo, escreveu Almoço Nu depois de ver um prato com ossos de frango ao final de uma refeição. Quando estava no México, tentou atirar em um copo equilibrado na cabeça da esposa. Acabou errando e tirando a vida de sua companheira.

Neal Cassady foi visto pela última vez pronunciando o número sessenta e quatro mil, novecentos e vinte oito. Antes de morrer, prometeu a sua namorada contar quantas tábuas havia numa linha de trem entre um vilarejo e outro.

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Meu pai nunca me falou She's leaving home, nem meteu o pé na estrada por aí. Mesmo assim, lembro-me de pedir a ele que comprasse revistas de carro para mim. Aos domingos, acordava cedo para assistir ao tradicional programa automotivo da televisão.

Hoje, não dou a mínima para os nossos cavalos elétricos. Sério! Não sei quais são os últimos modelos, nem os preços e novidades. Sei apenas que continuam a trafegar com quatro rodas e um motorista. Pelo menos até agora, né?


Adoro as contravenções simbólicas e idealizadas que o acaso me oferece. As modificações que a paisagem urbana arquitetada sobre mim projeta externamente é algo que me faz encher os olhos d'água. Sinto as reações combativas da trajetória que faço a pé, de carro ou carona e vejo sempre um horizonte inalcançável, mas fabuloso em sua forma e conteúdo.

Sou um caroneiro soft, devoto de GPS e um mequetrefe aventureiro. Sigo, entretanto, apostando na estrada como realidade transformadora dos meus passos. Das minhas solas e de minhas rodas. Confiando na verdade de quem caminha comigo, mas, sobretudo, aceitando as caronas dos caras que formulam caminhos antagônicos ao meu.

Pra mim, é no estacionamento da alma que os sonhos envelhecem. Bora!

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Sobre o trânsito brasileiro, o antropólogo Roberto da Matta brincou com o título de seu livro. em Deus e fé na tábua - Ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil. 

Nessa longa estrada da vida, correndo sem poder parar, seguem assim os que se conhecem como campeões. Realidade local, a antológica highway brasileira, cantada por Milionário e José Rico, é uma clássica sinfonia de buzinas estrada afora.

No ano passado, carros autônomos começaram a rodar em Nova Iorque. Uma afronta que faria Charles Bukowski revirar-se em seu túmulo.

On the Road é o livro favorito de Bob Dylan.

Kerouack escreveu o livro em três semanas.


Embarque, em português, departures, em inglês. Para nós, até breve. Amigo Leandro, desfrute da nova estrada, mas volte logo aqui pra nossa, que será recapeada para te receber. Como um tapete vermelho.

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Canção da estrada aberta (Walt Whitman)
Tradução: Tomaz Amorim Izabel

a pé e de coração leve eu tomo a estrada aberta,
saudável, livre, o mundo diante de mim,
o longo caminho de terra diante de mim levando para onde quer que eu escolha.
doravante eu não peço boa sorte, eu mesmo sou a boa sorte,
doravante eu não choramingo mais, eu não adio mais, não preciso de nada,
basta de reclamações entre paredes, bibliotecas, querelas críticas,
forte e satisfeito eu viajo a estrada aberta.
a terra, isto é suficiente.

Fevereiro de 2020